As ajudas do Estado, ao setor da Comunicação Social pecam por ser uma gota de água num oceano sem fundo. Pecam, também, por ser incorrigível a ignorância (ou será negligência, ou outra coisa pior?), que continua a caracterizar a ação de alguns membros de Governo. E por uma opacidade incompreensível que faz recair a suspeita de “marosca” e “amiguismo” em quase tudo o que vai decidindo.
Neste ponto, contudo, se o Governo não explica, cabe a quem aceitou um apoio que se traduziu numa mera compra de publicidade institucional antecipada e apenas reflete a mais insignificante, mas legítima das ajudas, explicar porque o fez. Não vão alguns cavaleiros andantes surfar a onda de uma seriedade acrescida que não existe e pior: nem é legítima nem acrescida.
Expliquemos, em nove breves pontos.
1. A crise da chamada comunicação social não é de hoje. Não nasceu com a Covid nem acabará com a epidemia. Contudo, esta contribuiu como um terramoto para abanar os alicerces de uma estrutura que estava em plena reconstrução.
Algumas gruas vieram abaixo e mais pilares ruíram na derrocada que todos queríamos evitar. Subitamente, os anunciantes, sem receitas, deixaram de investir.
A Renascença aposta há mais de 20 anos no multimédia. A prova é que em 2003 lançou um jornal diário digital com uma marca própria (o Página 1) com poucos meios, mas opinião própria e de luxo. Nele escreveram semanalmente, durante anos, D. Tolentino Mendonça, D. Manuel Martins, Rosário Carneiro e Isabel Capeloa Gil e ainda escrevem, embora agora apenas no site, João Ferreira do Amaral, José Miguel Sardica, Luís Cabral, entre outros. Ganhámos por seis anos consecutivos os prémios de excelência em ciberjornalismo ou reportagem multimédia do Obciber. Estamos nas novas tecnologias muito à frente. Apostámos tudo no futuro.
2. Mesmo assim, a “pirataria” assumida das plataformas digitais (Google e Facebook), ou informal, vinda de outros jornais digitais que se foram implantando no mercado, à custa da mera citação de muitos trabalhos alheios, foi fazendo mossa. Este “parasitarismo” institucionalizado das novas plataformas foi sugando forças, ao mesmo tempo que debilitava receitas publicitárias, desviadas literalmente em favor desta nova concorrência, muita dela desleal.
3. Vivendo exclusivamente da publicidade a crise bate-nos à porta, pela segunda vez nos últimos dez anos, de forma arrasadora.
4. Somos confessionais. Mas sem dependências ideológicas nem alinhamentos políticos. Dispostos a dizer bem ou mal da esquerda e da direita, conforme nela encontramos a consonância com o nosso claríssimo estatuto editorial, e aquele pedacinho de verdade que buscamos. Sujeitos a erros e enganos, como todos, mas com a firme convicção de que somos uma rádio privada que presta um inestimável serviço público dando voz aos sem voz, e numa série de áreas da nossa vida colectiva. Por isso somos reconhecidos pelos quatro milhões de portugueses que, semanalmente, contatam com o nosso grupo, através de rádios de excelência.
5. Esse reconhecimento enquanto “marca de confiança” (prémio que anos a fio nos tem reconhecido o trabalho enquanto grupo) não nos poupa à crise.
Só na segunda quinzena de Março, as perdas em publicidade, face ao mês homólogo do ano passado, ultrapassaram o valor da publicidade institucional que o Estado nos irá pagar antecipadamente para colmatar a queda. Mas falta ainda a totalidade dos meses de abril e maio e - sabe-se lá! - o que para aí mais virá.
A empresa não despediu ninguém nem recorreu ao "lay-off". Mas os números são suficientes para qualquer empresa temer o pior. Havemos de vencer mais esta crise, como vencemos a anterior (da qual estávamos agora a levantar cabeça), mas mesmo uma rádio com mais de 80 anos não pode jurar sair saudável da Covid. Estamos, como tantos outros, num setor de alto risco.
6. Que o Estado corra em socorro do setor é pura justiça. Não se trata de esmola (embora a escassez de meios disponíveis possa levar a que seja visto quase assim…). O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, já tinha apelado a que se estudasse uma ajuda que garantisse a sobrevivência dos meios de comunicação e consequentemente do pluralismo, muito antes da crise. Trata-se, segundo o Presidente - e bem - de não impedir o livre escrutínio dos órgãos de soberania que cabe à “Comunicação Social Livre” e já cabia antes desta crise.
7. Apesar dos apoios serem mínimos (15 milhões de euros dos quais pouco mais de três para os meios de comunicação de cariz regional), os meios anunciados foram recebidos pela Plataforma de Media Privados que reúne os principais grupos (Impresa, Média Capital, Cofina, Global Media, Renascença Multimédia e Público) como bem-vindos. Meios como o Observador foram incluídos, e tal como os outros, a partir da sua quota de publicidade no segundo trimestre de 2019, em função da qual seriam distribuídas as verbas de compra de publicidade institucional (que só por muito má fé se pode confundir com propaganda governamental).
8. Perguntaram-me, nessa altura, se me parecia um bom critério? Achei que, entre muitos, este tinha a grande vantagem de não permitir desvios e ser suficientemente objetivo e transparente. A quota de publicidade detida pela Impresa é superior à da Média Capital e muito superior à da Renascença Multimédia? Levam mais os primeiros. Parece claro. A nossa é superior à de outros media, temos nós mais ajuda do que esses.
Os dados, do período homólogo de referência são conhecidos e escrutináveis. Onde está a dúvida? Fica tudo clarinho como a água e sem manipulação possível. Desta forma, pareceu-me bem.
9. Se assim é, de onde surgem as dúvidas, os protestos, os remoques e a vozearia em torno destas migalhas?
Primeiro, o Governo na sua obsessão secretista, em vez de publicar o critério, que eu tinha como clarinho que nem água, omite-o na publicação dos resultados da divisão do bolo.
Porquê? Para dar a ideia de que se tratou de uma barganha secreta? Porque já os tinha anunciado? Vá-se lá saber porquê, a verdade é que fez mal. Eu não descortino nenhuma justificação plausível e lamento.
Segundo, o Governo cometeu um erro fatal e imperdoável: a verba devida ao Observador é inicialmente anunciada como de 19 mil euros e depois de protestos do jornal é apresentada como uma gralha e revista para 90 mil. Tenham lá paciência, mas esta é uma falha indesculpável. Se havia erro ao menos que fosse ao contrário. Este é verdadeiramente inadmissível. Talvez apenas prove que há ignorâncias que não se resolvem com a telescola, mas francamente mancha a reputação de todo o processo e permite ao Observador uma campanha publicitária ao estilo dos “nóbeis” recusados, pela qual, quase somos convidados a processar o Estado.
O Observador é um dos meus concorrentes e vê-lo beneficiar do papel de virgem ofendida é uma ofensa para esta casa. São um jornal liberal e, de forma consistente com a sua ideologia, não podem, não querem, não devem ou, simplesmente, viram aqui um nicho de oportunidade para não "aceitarem" ajudas estatais e lançarem uma campanha de "crowdfunding" junto dos assinantes que até lhes pode render mais? Tudo bem. O que não podem é, com isso, lançar a suspeição sobre os que aceitam a compra de publicidade institucional de forma totalmente legítima. Aliás, teria ficado bem ao Observador recusar - de forma pública e notória - a ajuda... mas antes de conhecer o valor do cheque.
Que me desculpe o Zé Manuel Fernandes, que foi meu diretor e de quem sou muito amiga, mas a isto chama-se populismo e golpe baixo.
Que dependência existe nos media dinamarqueses das ajudas estatais? O que faz da BBC uma empresa vendida ao poder que é o seu único acionista, se quem ela serve é o povo que a paga e não o Governo que ocasionalmente a tutela?
A publicidade compra consciências? Cá em casa não, porque não estamos à venda. Seja a Jerónimo Martins, a Sonae, a Depuralina ou outra coisa qualquer. Mais facilmente se pode dizer que um grupo de acionistas tem uma agenda económica óbvia do que um programa de publicidade institucional reduz os graus de liberdade de quem quer que seja.
Durante o consulado Sócrates é sabido - e o próprio reconheceu - a Renascença como “um irritante” para o Governo. Já estava na direção. Azar dele. Não me consta que Passos Coelho nos tenha devotado grande simpatia. Tivemos pena. As grandes empresas “estatais” resolveram durante mais de uma década ir anunciar para outros lados. São ossos do ofício. Os mesmos que eu e o Zé Manel (já diretor do jornal) passámos, em conjunto, no Público, quando o Jornal “do Belmiro” tinha a fama de "enfant terrible" da democracia portuguesa . Nessa altura, eu era jornalista e agradeço ao acionista, ao Vicente e ao próprio Zé Manel, diretores de então, nunca eu ter pensado quais os interesses do acionista antes, durante ou depois de escrever, os meus textos, no caderno de economia, durante a OPA que o “patrão” perdeu.
Aliás, quem vinha de O Independente, do Miguel Esteves Cardoso e do Paulo Portas, já estava vacinado. A liberdade era coisa visceral.
Na Renascença também. E o Observador pode ter muito jeito para obter "crowdfunding", mas isso não os faz mais livres do que nós. Aliás a liga dos nossos amigos já existe há quase 80 anos. Embora dar um baile ao Observador?