Durante as três semanas e tal que o General Spínola passou nos Estados Unidos, nos meses de Novembro e Dezembro de 1975, várias foram as vezes que comemos juntos em restaurantes. E como o Inglês dele era de uma pobreza franciscana, era eu o intérprete de serviço.
Terminada a refeição, que nunca incluía aperitivo, raramente incluía sobremesa, e jamais incluía qualquer bebida alcoólica, pois eu era praticamente abstémio e o General Spínola, de uma frugalidade impressionante, foi a pessoa que mais cabalmente me fez lembrar a essência de uma educação espartana, ele voltava-se para mim e pedia-me que mandasse vir um copo de água quente. Eu chamava o empregado ou a empregada de mesa e pedia-lhe que trouxesse um copo de água quente.
- Água quente? Para chá? - era a pergunta imediata.
- Não. Para beber - esclarecia eu.
E lá vinha o copo de água quente. O General apalpava e dizia que não era assim que queria a água. Queria-a quente. (É que por água quente, para beber, o empregado ou a empregada de mesa entendia água à temperatura normal.)
Eu voltava a chamar o empregado de mesa e dizia que trouxesse um copo de água quente.
E lá vinha novamente o empregado com o copo de água, mas ainda não ao gosto de Spínola, dado que, sem mais explicações, o empregado de mesa entendia água levemente tépida.
Então eu esclarecia que imaginasse que trazia água para chá, mas já um pouco esfriada.
Com a paciência e o meio sorriso que se exige dos empregados de mesa americanos, lá vinha por fim um copo de água quente, ao gosto do General.
E sabem o que sucedia? Os empregados de mesa, visivelmente intrigados e cheios de curiosidade, ao afastarem-se da mesa, olhavam sorrateiramente para trás, pelo rabinho do olho, a fim de ver o que o homem do monóculo e do pingalim fazia com o copo de água quente. Ao verificarem que ele bebia a água com a maior das naturalidades, afastavam-se a sorrir, disfarçadamente.
Depois das primeiras duas ou três experiências, que também a mim me intrigavam e divertiam um pouco, interiormente, já se vê, eu fazia questão de explicar ao empregado, logo à partida, que trouxesse um copo de água bastante quente.
Devo esclarecer que, ao observar e reflectir nesse hábito peculiar do General Spínola, me veio à lembrança o que meu pai costumava fazer com o vinho, sobretudo durante os longos, nevosos e cruéis meses de Inverno, na terra que os fados me deram por berço: Soutelinho da Raia, situada num planalto, em Trás-os-Montes, entre Chaves e Montalegre. Uns minutos antes das refeições, meu pai punha a caneca de vinho a aquecer junto da lareira, para bebê-lo morno, dizendo que dessa maneira se fazia melhor a digestão, que era, aliás, o que Spínola afirmava, quanto ao copo de água quente, bebido no final das refeições.
Comentando uma vez, meses mais tarde, com Adriano Moreira, este hábito alimentar do General, ele, mais versado do que eu nas velhas tradições portuguesas de carácter culinário, nutritivo e dietético, veio a confirmar, quanto ao copo de vinho quente e de água quente, bebidos no fim das refeições, o que meu pai e o General Spínola diziam e faziam.
António Cirurgião