O Plenário do Tribunal Constitucional decidiu hoje, por maioria,
pronunciar-se pela inconstitucionalidade de algumas das normas do
Decreto n.º 23/XV da Assembleia da República, cuja fiscalização o
Presidente da República lhe havia solicitado.
Na sequência da pronúncia pela inconstitucionalidade constante do
Acórdão n.º 123/2021, a Assembleia da República aprovou uma nova versão
da lei relativa à morte medicamente assistida não punível. A expectativa
do Tribunal era a de que nela tivessem sido introduzidas as
modificações insinuadas naquele aresto.
Comprovou o Tribunal que o legislador, tendo embora desenvolvido
esforços no sentido da densificação e clarificação de alguns conceitos
utilizados na versão anteriormente fiscalizada, optou por ir mais além,
alterando em aspetos essenciais o projeto anterior. Ao fazê-lo, a
Assembleia da República limitou-se a exercer as competências que a
Constituição lhe atribui. Todavia, tal opção teve consequências, pois
implicou que o Tribunal, chamado a pronunciar-se e aplicando a Lei
Fundamental, houvesse de proceder a uma nova fiscalização, incidindo
sobre as normas alteradas que foram objeto do pedido do Presidente da
República.
Ao proceder a tal fiscalização, o Tribunal concluiu que, tendo o
legislador decidido caracterizar a tipologia de sofrimento através da
enumeração de três características («físico, psicológico e espiritual»)
ligados pela conjunção “e”, são plausíveis e sustentáveis duas
interpretações antagónicas deste pressuposto. Assim fazendo, o
legislador fez nascer a dúvida, que lhe cabe clarificar, sobre se a
exigência é cumulativa (sofrimento físico, mais sofrimento psicológico, mais sofrimento espiritual) ou alternativa (tanto o sofrimento físico, como o psicológico, como o espiritual).
Ou seja: o segmento em análise (“sofrimento físico, psicológico e
espiritual”) consente que dele se extraiam legitimamente alternativas
interpretativas possíveis e plausíveis que conduzem a resultados
práticos antagónicos: i) reservar o acesso à morte
medicamente assistida apenas a pessoas que, em virtude de lesão
definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, relatem um
sofrimento de grande intensidade que corresponda cumulativamente às tipologias de sofrimento físico, psicológico e espiritual; ou ii) garantir
o acesso à morte medicamente assistida a todas as pessoas que, em
consequência de uma das mencionadas situações clínicas, sofram
intensamente, seja qual for a tipologia do sofrimento. Em
termos práticos, e a título meramente exemplificativo, está em causa
saber se um doente a quem tenha sido diagnosticado um cancro com um
prognóstico de esperança de vida muito limitada, ou um doente que padeça
de esclerose lateral amiotrófica que não tenham sofrimento físico
(vulgarmente entendido como dor) têm ou não acesso à morte medicamente
assistida não punível.
Em suma, foi criada, desta forma, uma intolerável indefinição quanto
ao exato âmbito de aplicação da nova lei. Recorde-se que considerou o
Tribunal que o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de
viver em quaisquer circunstâncias e que as condições em que é legalmente
admissível a morte medicamente assistida têm de ser «claras,
antecipáveis e controláveis» (Acórdão n.º 123/2021), cabendo ao
legislador defini-las de modo seguro para todos os intervenientes.